segunda-feira, 1 de junho de 2009

Reflexos


Se tivesse que condensar a minha passagem de um ano pela Guiné-Bissau numa imagem apenas, ela seria apenas um reflexo. Reflexo porque tudo nos parecia passar-se do outro lado do espelho. A vida, a nossa vida de todos os dias, a nossa vida ocidental, parecia ter-se congelado, cessado todo o movimento, e, de repente, estávamos do outro lado.
Do outro lado, uma realidade diferente, tão diferente que nos espantava todos os dias. A paisagem, as gentes, os ritmos, as rotinas, o clima, a nossa forma de estar, tudo sofreu uma inversão, abandonou o seu lugar usual e se situou numa outra dimensão.
África, o apelo de África. Agora o entendo, agora entendo a saudade que sempre deixa em que já lá viveu ou por lá passou. África é tão estranha aos olhos de um europeu que se entranha. E entranha-se irremediavelmente, sem apelo nem agravo. África entra no coração.
No caso particular da Guiné-Bissau, a realidade é ao mesmo tempo estranha e simpática. Atrai-nos. O povo é simpático, humilde, mas grande no seu interior. Deixei lá bons amigos. Há um sentimento generalizado de dependência que é necessário combater. Mas nunca nos sentimos especialmente ameaçados. Não mais do que nos sentimos cá nas nossas grandes cidades.
Mas dói. Dói a ausência de futuro nos olhos das crianças, dói o nulo investimento na formação, na educação, dói o tipo de vida resignada, dói que a única solução seja emigrar, ainda que precariamente. Dói que o eldorado esteja sempre do lado de lá. Dói pensar nas desilusões de quem passa para o lado de lá e encontra o que não esperava.
Dói a ausência de futuro e de estratégias de desenvolvimento. Dói que se morra de “coisas da guiné”, espécie de doença generalista que agrupa tudo o que mata e se desconhece.
Mas é doce o crioulo, português reduzido, adaptado e quase cantado. É doce aprender que a sonoridade musical de “Ka Tem” significa “não tenho”. É doce perceber que ainda somos bem vindos. É doce perceber que nos chegam a olhar como solução. É doce ouvir o crioulo acompanhado de um sorriso. São doces os cajus, as mangas, as goiabas, as bananas-maçãs.
São doces os pôr-do-sol em que a terra e água se tingem de vermelho e se apagam rapidamente numa escuridão de breu. É doce o cheiro do ferro do solo laterítico que, após uma chuvada, nos impregna o olfacto.
Depois de um dia de trabalho, cansativo tanto pela jornada como pelo calor, aquecia-nos o coração fazer a caminhada de volta ao estaleiro e ouvir a pequenada a correr atrás de nós, a querer por força cumprimentar-nos e a chamar-nos “Bianco, Bianco”, ou a repetir-nos fórmulas aprendidas, mas não compreendidas, como “Branco Pelelé, Preto Humbau”, espécie de cantilena que poderia ser insultuosa, se levada à letra. Para nós, era uma canção, era folclore apenas. Fazia parte da África tribal, dos sortilégios, dos rituais, dos curandeiros, do modo de vida ligado á terra. Mas quase todos os miúdos, sem excepção nos aprendiam o nome rapidamente.
Nós éramos os estranhos. Mas, estranhamente, sentimo-nos em casa e quase todos, sem excepção, sentiremos, ao longo da vida, saudades deste tempo e da Guiné-Bissau, que, como se canta é “pequenina no tamanho, mas grande na fama, Bissau”.
Este é o meu último post, a ponte está pronta, a inauguração marcada. A tarefa está cumprida.