Se tivesse que condensar a minha passagem de um ano pela Guiné-Bissau numa imagem apenas, ela seria apenas um reflexo. Reflexo porque tudo nos parecia passar-se do outro lado do espelho. A vida, a nossa vida de todos os dias, a nossa vida ocidental, parecia ter-se congelado, cessado todo o movimento, e, de repente, estávamos do outro lado.
Do outro lado, uma realidade diferente, tão diferente que nos espantava todos os dias. A paisagem, as gentes, os ritmos, as rotinas, o clima, a nossa forma de estar, tudo sofreu uma inversão, abandonou o seu lugar usual e se situou numa outra dimensão.
África, o apelo de África. Agora o entendo, agora entendo a saudade que sempre deixa em que já lá viveu ou por lá passou. África é tão estranha aos olhos de um europeu que se entranha. E entranha-se irremediavelmente, sem apelo nem agravo. África entra no coração.
No caso particular da Guiné-Bissau, a realidade é ao mesmo tempo estranha e simpática. Atrai-nos. O povo é simpático, humilde, mas grande no seu interior. Deixei lá bons amigos. Há um sentimento generalizado de dependência que é necessário combater. Mas nunca nos sentimos especialmente ameaçados. Não mais do que nos sentimos cá nas nossas grandes cidades.
Mas dói. Dói a ausência de futuro nos olhos das crianças, dói o nulo investimento na formação, na educação, dói o tipo de vida resignada, dói que a única solução seja emigrar, ainda que precariamente. Dói que o eldorado esteja sempre do lado de lá. Dói pensar nas desilusões de quem passa para o lado de lá e encontra o que não esperava.
Dói a ausência de futuro e de estratégias de desenvolvimento. Dói que se morra de “coisas da guiné”, espécie de doença generalista que agrupa tudo o que mata e se desconhece.
Mas é doce o crioulo, português reduzido, adaptado e quase cantado. É doce aprender que a sonoridade musical de “Ka Tem” significa “não tenho”. É doce perceber que ainda somos bem vindos. É doce perceber que nos chegam a olhar como solução. É doce ouvir o crioulo acompanhado de um sorriso. São doces os cajus, as mangas, as goiabas, as bananas-maçãs.
São doces os pôr-do-sol em que a terra e água se tingem de vermelho e se apagam rapidamente numa escuridão de breu. É doce o cheiro do ferro do solo laterítico que, após uma chuvada, nos impregna o olfacto.
Depois de um dia de trabalho, cansativo tanto pela jornada como pelo calor, aquecia-nos o coração fazer a caminhada de volta ao estaleiro e ouvir a pequenada a correr atrás de nós, a querer por força cumprimentar-nos e a chamar-nos “Bianco, Bianco”, ou a repetir-nos fórmulas aprendidas, mas não compreendidas, como “Branco Pelelé, Preto Humbau”, espécie de cantilena que poderia ser insultuosa, se levada à letra. Para nós, era uma canção, era folclore apenas. Fazia parte da África tribal, dos sortilégios, dos rituais, dos curandeiros, do modo de vida ligado á terra. Mas quase todos os miúdos, sem excepção nos aprendiam o nome rapidamente.
Nós éramos os estranhos. Mas, estranhamente, sentimo-nos em casa e quase todos, sem excepção, sentiremos, ao longo da vida, saudades deste tempo e da Guiné-Bissau, que, como se canta é “pequenina no tamanho, mas grande na fama, Bissau”.
Este é o meu último post, a ponte está pronta, a inauguração marcada. A tarefa está cumprida.
Do outro lado, uma realidade diferente, tão diferente que nos espantava todos os dias. A paisagem, as gentes, os ritmos, as rotinas, o clima, a nossa forma de estar, tudo sofreu uma inversão, abandonou o seu lugar usual e se situou numa outra dimensão.
África, o apelo de África. Agora o entendo, agora entendo a saudade que sempre deixa em que já lá viveu ou por lá passou. África é tão estranha aos olhos de um europeu que se entranha. E entranha-se irremediavelmente, sem apelo nem agravo. África entra no coração.
No caso particular da Guiné-Bissau, a realidade é ao mesmo tempo estranha e simpática. Atrai-nos. O povo é simpático, humilde, mas grande no seu interior. Deixei lá bons amigos. Há um sentimento generalizado de dependência que é necessário combater. Mas nunca nos sentimos especialmente ameaçados. Não mais do que nos sentimos cá nas nossas grandes cidades.
Mas dói. Dói a ausência de futuro nos olhos das crianças, dói o nulo investimento na formação, na educação, dói o tipo de vida resignada, dói que a única solução seja emigrar, ainda que precariamente. Dói que o eldorado esteja sempre do lado de lá. Dói pensar nas desilusões de quem passa para o lado de lá e encontra o que não esperava.
Dói a ausência de futuro e de estratégias de desenvolvimento. Dói que se morra de “coisas da guiné”, espécie de doença generalista que agrupa tudo o que mata e se desconhece.
Mas é doce o crioulo, português reduzido, adaptado e quase cantado. É doce aprender que a sonoridade musical de “Ka Tem” significa “não tenho”. É doce perceber que ainda somos bem vindos. É doce perceber que nos chegam a olhar como solução. É doce ouvir o crioulo acompanhado de um sorriso. São doces os cajus, as mangas, as goiabas, as bananas-maçãs.
São doces os pôr-do-sol em que a terra e água se tingem de vermelho e se apagam rapidamente numa escuridão de breu. É doce o cheiro do ferro do solo laterítico que, após uma chuvada, nos impregna o olfacto.
Depois de um dia de trabalho, cansativo tanto pela jornada como pelo calor, aquecia-nos o coração fazer a caminhada de volta ao estaleiro e ouvir a pequenada a correr atrás de nós, a querer por força cumprimentar-nos e a chamar-nos “Bianco, Bianco”, ou a repetir-nos fórmulas aprendidas, mas não compreendidas, como “Branco Pelelé, Preto Humbau”, espécie de cantilena que poderia ser insultuosa, se levada à letra. Para nós, era uma canção, era folclore apenas. Fazia parte da África tribal, dos sortilégios, dos rituais, dos curandeiros, do modo de vida ligado á terra. Mas quase todos os miúdos, sem excepção nos aprendiam o nome rapidamente.
Nós éramos os estranhos. Mas, estranhamente, sentimo-nos em casa e quase todos, sem excepção, sentiremos, ao longo da vida, saudades deste tempo e da Guiné-Bissau, que, como se canta é “pequenina no tamanho, mas grande na fama, Bissau”.
Este é o meu último post, a ponte está pronta, a inauguração marcada. A tarefa está cumprida.
8 comentários:
Esta descrição, tão sentida e verdadeira, só pode despertar saudades mesmo em quem ainda cá está.
Parabéns pelo trabalho que irá certamente ser um bocadinho de futuro melhor para os guineenses!
Caro Pedro Moço
Acho que já mais do que uma vez confidenciei que acompanhava o(s) blogue(s) que ia mostrando o avanço da construção da Ponte.
Desta vez quero apenas expressar o meu agrado pelo texto apresentado.
Nele está lá muito do que eu sinto e espero que seja agora mais fácil aos mais novos que vos lerem entenderem o porquê de tanto menos novos, que por aí estiveram noutras condições, que disseram que "Guiné, nunca mais!", que durante décadas calaram as suas experiências, aparecem de algum tempo a esta parte a reviver em força esses tempos e a interessarem-se por tudo o que à Guiné diz respeito.
Deve ter sido da "água da bolanha".
É que essa terra e essa gente cola-se na pele e é impossível alhearmo-nos dela.
Faço votos para que depois de lá ter saído e de ser capaz de configurar todos esses sentimentos que expressou, não deixei de olhar pela Guiné.
Se tiver tempo dê uma olhadela num blogue colectivo (no sentido de que os seus conteúdos, embora da responsabilidade do Editor, são provenientes de diversos autores) chamado Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde poderá encontrar, a par de algumas coisas menos interessantes, vários artigos, fotos, histórias, memórias, experiências, que considero que o poderão satisfazer.
Pode inclusivamente, caso queira, "bater à porta da Tabanca" e entrar pois nela há lá um cantinho para os "amigos da Guiné", que gostamos de partilhar.
Lá também poderá inteirar-se de que iniciativas (recolhas de apoios, donativos em géneros, viagens organizadas em grupos, etc.) e para que organizações e/ou entidades se destinam, podendo assim materializar a sua ajuda.
Um abraço, se me permite, de parabéns pelo trabalho efectuado e, já agora, também pelo magnífico e sentido texto.
Hélder Sousa
Está convidado a assistir ao Debate Público sobre o Futuro Democrático da Guiné-Bissau com Francisco Fadul, organizado pelo MIL: Movimento Internacional Lusófono:
http://movv.org/2009/06/05/2%c2%aa-conferencia-mil-o-futuro-democratico-da-guine-bissau-com-francisco-fadul/
Assine e divulgue a:
Petição em prol da Construção de um Estado de Direito Democrático na Guiné-Bissau:
http://www.gopetition.com/online/26953.html
Boas tardes,
Sou leitor esporádico do blog e bloguista.Estou em Africa num meio diferente.Angola! Ou se gosta ou se entranha! Tenho dias em que me revejo nas linhas escritas, mas infelizmente só acontece nas províncias.Tudo aí é mais puro, mais simples, mais ingénuo... Luanda é uma selva urbana onde se mata por pouco e se vive sem condições.Estou agora no Lobito, que maravilha!mas infelizmente sem aquelas ofertas (mimos) que nos fazia pensar que estávamos na europa.
Parabéns pelo Blog e pelo trabalho cumprido!Aqui fazem falta Eng. Civis com espírito de missão e vontade de se sacrificar em prol de um bem comum!Cumprimentos ao Tiago Costa do Mitchado!
Lindo. Lindo demais para se ficar indiferente. à isso mesmo. A Guiné "cola-se" na nossa pele. Quantas saudades daquela gente. Gente boa que tarda a encontrar o seu destino. Continue amigo da Guiné e como diz o Hélder Valério, dê uma olhada no blog do Luís Graça
Um abraço amigo
Júlio César
Nas minhas deambulações internautas, foi com muita satisfação e estupefacção agradável que descobri este blogue.
Não tenho palavras para poder exprimir o que senti quando:
1º - Por outra via e em outro blogue, vejo uma foto desta ponte, já pronta.
2º - Porque já percorri (ainda não li com olhos de ver) este sítio e verifiquei que há gente que aqui trabalhou que talvez já conhecesse o local.
3º - Há outras pessoas que nunca estiveram na Guiné e ficaram por ela fascinados.
4º - E esta é que a razão principal da intervenção (com Vossa licença), porque atravessei a dita jangada, neste local, nos anos de 1963 a 1965 (porra, que velho que o tipo está!) montes de vezes.
No meio do rio dormi algumas noites, quando fazíamos guarda à jangada, durante 24 horas, até camaradas nosso nos virem render.
É um previlégio poder, embora para todos eu seja um intruso, um desconhecido, mas que comunga e concorda com todas as afirmações aqui contidfas e exprimidas pelos comentdores, anónimos ou Vosso conhecidos.
Na realidade a Guiné fascina-nos, e não fora um regime tosco e cego, teríamos tido outras condições que não aquelas porque passamos e aqueloutras que os seus autóctones estão a passar.
Quando fui para a Guiné, havia apenas uma ponte. A de Mansoa.
Fiquei mais satisfeito, quando verifico pelo Vosso blogue que também está feita outra ponte em João Landim.
Passei dezasseis meses em Ingoré. A meia dúzia de quilómetros do Senegal (eu andei dentro do território Senegalês). Depois estive em Bula e muitos outros locais que não vale a pena mencionar.
Regozijo-me convosco e com a empresa SdC por tudo aquilo que todos são capazes de transmitir.
Desculpem o desabafo...
Mas apenas uma coisa mais... este blogue pode continuar, como se diz por aí, com intervenções do género do Luis Graça & Camaradas da Guiné.
A finalização da ponte não justifica que este blogue termine.
Tenho um blogue (terrasdomarnel.blogspot.com) e nele estou agora a contar histórias da Guiné.
Permitam-me apresentar os meus cumprimentos,
JM Ferreira
j_m_ferreira@sapo.pt
Espectacular este depoimento que é um espelho da recepção que me facultaram aquando da minha passagem de Auto-Caravana pela Guiné-Bissau.
Uma vez mais, Bem Hajam e parabéns pelo espectacular e belo texto!
António Resende
Muito interessante um texto com alma, vivência super incrível e excitante, afagos recebidos de um povo que se mostra ainda muito inocente, incrivelmente fantástico que me deixa de lagrimas, é comovente. Muito bem escrito parabéns África um de meus sonhos
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